OBRAS

Carolina Maria de Jesus

É autora de uma obra extensa e escreveu gêneros literários diversos, como a poesia lírica, o romance, o drama, o conto, o provérbio, a correspondência, a canção. Era como poeta, sobretudo, que se autodefinia e se apresentava ao mundo. Nos poemas, ela elaborava esteticamente as “ideias que lhe comprimiam o cérebro”, e que exigiam escape, levando-a à busca por comunicabilidade.

Sua primeira publicação literária foi o poema “O colono e o fazendeiro”, cujo tema central é a reforma agrária. A gênese de sua poética é inconformada.    

O Colono e o Fazendeiro

Diz o brasileiro
Que acabou a escravidão
Mas o colono sua o ano Inteiro
E nunca tem um tostão
Se o colono está doente
É preciso trabalhar
Luta o pobre no Sol quente
E nada tem para guardar
Cinco da madrugada
Toca o fiscal a corneta
Despertando o camarada
Para colheita
Chega à roça ao Sol nascer
Cada um na sua linha
Suando para comer
Só feijão com farinha
Nunca pode melhorar
Esta negra situação
Carne não pode comprar
Para não dever ao patrão
Fazendeiro ao fim do mês
Dá um vale de cem mil réis
Artigo que custa seis
Vende ao colono por dez
Colono não tem futuro
E trabalha todo dia
O pobre não tem seguro
E nem aposentadoria
Ele perde a mocidade
A vida inteira no mato
E não tem sociedade
Onde está o seu sindicato
Ele passa o ano inteiro
Trabalhando. Que grandeza.
Enriquece o fazendeiro
E termina na pobreza
Se o fazendeiro falar
Não fique na minha fazenda
Colono tem que mudar
pois não há quem o defenda
O colono quer estudar
Admira a sapiência do patrão
Mas é um escravo, tem que estacionar
não pode dar margem à vocação
Trabalha o ano inteiro
E no Natal não tem abono
Percebi que o fazendeiro
Não dá valor ao colono.

O poema saiu no jornal Folha da Manhã, em 1941, dentro da reportagem “Carolina Maria, poetiza preta”, realizada pelo jornalista Willy Aureli.

Transcrição da reportagem:

Carolina Maria, poetiza preta
Willy Aureli.

[Primeiro parágrafo ilegível]

[…] todas as vezes que […] de “exótico” surge nos umbrais da redação, o secretário do jornal, circunvagando o olhar pelas mesas, trata de me descobrir a fim de “empurrar” o artigo para o meu lado…

― Você entende dessas coisas ― diz, a título de explicação.

E eu, por “entender dessas coisas”, lido com os fatos mais disparatados deste planeta, desses que chovem, quando um mortal menos o espera, pela redação adentro…
Sábado, por exemplo, apareceu uma poetisa. É bom que os leitores saibam: os jornalistas têm verdadeiro pavor às mulheres metidas a literatas, poetisas, declamadoras! Portanto, à voz de que uma fazedora de versos estava à espera de ser recebida produziu-se um vácuo imediato.

Eu vinha entrando nesse momento, e o secretário, que estava de saída, com um sorriso demasiadamente camarada interpelou-me:

― Você quer atender uma senhora?
― Pois não…

A senhora foi introduzida. Dois olhos rutilando nas órbitas brancas, duas genuínas jabuticabas irrequietas a nadar no leite dos bulbos. Mais abaixo, dentro de um negror profundo, um sorriso alvar, um traço claro numa noite escura: os dentes níveos numa boca jovem.

Em suma, um belo espécime de mulher negra. Boa estatura, elegante mesmo, porte rainha Sabá, assim como a descreve Haggard.

― Sou poetisa…
― Sente-se, por favor…
― Faço versos… Ninguém, porém, me leva a sério!
― Como assim?
― Ando pelas redações, e quando sabem que sou preta mandam dizer que não estão…
Eis-me às voltas com meu “caso exótico” e trato de me sair às mil maravilhas, ainda mais que o horário aperta e tenho encontro marcado.
― São uns ingratos…
― O Sr. quer ver alguma poesia de minha lavra?
― Conceda-nos essa honra…

Exibe uns papéis, um caderno, uns recortes de revistas. Lê e declama. Com naturalidade e graça, ótima dicção, tudo de mistura com o sorriso que é um raio de luz em tamanhas trevas…

*Chama-se Carolina Maria, tem 26 anos de idade, nasceu em Sacramento, Minas Gerais. Das Alterosas veio para a pauliceia como criada de servir e, logo depois, evoluindo, acabou numa fábrica, onde ainda se encontra trabalhando.

― Só andei dois anos na escola. Agora nem posso ler.
― Como assim?
― Sei demais, e tudo quanto leio me estorva…
Não há a menor fanfarronice ou gabolice, tão próprias dos pretos pernósticos. Diz tudo com a maior franqueza e ingenuidade.
― Sei não… minha cabeça está cheia de versos. Brotam sozinhos, e eu coloco-os no papel… Outros aproveitam do meu saber. Há discos com poesias de minha lavra. Mas o que adianta reclamar? Eu produzo e outros lucram…

Delicia-nos com uns versos: cantos amorosos, ode ao Lampião, tristezas de namorados, tudo muito simples, muito puro, sincero; fala direta ao coração dos humildes.

A escrita de Carolina Maria de Jesus é central para refletirmos as diversas camadas da nossa conjuntura social e dos desafios que temos enquanto sociedade. Muitas dessas camadas só adquiriram contornos mais apreensíveis a partir de sua publicação.


O nome Carolina Maria de Jesus traduz o direito à voz, à escrita e à imaginação para todes que desejam escrever e não possuem o salvo-conduto de pertencerem à elite que pode falar. Demarca uma tradição de liberdade e ruptura no mundo das letras.


Declamei o Noivas de Maio, o prefeito gostou da poesia, a poesia tem erros gramaticais não há possibilidade de correção: é uma advertência social.